Nos marcos da onda pós-moderna que varreu o mundo durante as décadas de 1980 e 1990, houve uma tentativa revalorização do pensamento de Nietzsche e, inclusive, de aproximá-lo de Marx. Qual a razão disso? Segundo Marshall Berman, ambos estariam envolvidos na “mesma tentativa de expressar e de agarrar um mundo o qual tudo está impregnado de seu contrário”. E mais: eles estariam preocupados na construção de uma “nova espécie de homem (…) que, colocando-se em oposição ao seu hoje, teria a coragem e a imaginação de ‘criar novos valores’”. Para ele, Marx e Nietzsche, teriam sido “simultaneamente entusiastas e inimigos da vida moderna”. Neste sentido, contrapunham-se a maioria dos autores atuais, que possuem uma visão unilateral da modernidade, pois caminhariam para polarizações rígidas e anti-dialéticas na qual a modernidade “ou é vista com um entusiasmo cego, acrítico, ou é condenada (…), sempre concebida como um monólito fechado, que não poderia ser moldado ou transformado pelo homem moderno”.
De fato, os dois autores alemães captaram a crise que impregnava a sociedade capitalista moderna e se colocaram contra ela; mas, indubitavelmente, olhavam esta sociedade em crise de maneira muito diferente. Marx foi um crítico feroz do capitalismo, advogando o fim da exploração do trabalho, a destruição do Estado burguês e sua substituição pelo chamado Estado-Comuna. A perspectiva marxista, portanto, era assentada num democratismo radical-popular, no qual as massas tinham um papel central e positivo na história.
Nietzsche, pelo contrário, era fortemente marcado por um ódio aristocrático às classes populares e ao socialismo, inclusive nas suas formas mais amenas. A sua crítica ao capitalismo era essencialmente conservadora e reacionária. Concentrava seus ataques ao liberal-democratismo que permitiria, ainda que de maneira limitada, a participação política de setores despossuídos. Na sua obra clássica Para além do Bem e do Mal, afirmou: o movimento democrático era “uma forma de degradação da organização política”, equivalente à “degradação e apequenamento do próprio homem”.
Nietzsche, também, não mostrou nenhuma simpatia por aqueles que chamava “cães anarquistas”, que vagueavam “nos becos da civilização”, nem pelos “fanáticos de irmandades que se denominam socialistas” e almejavam construir uma “sociedade livre”. Expressou, por diversas vezes, sua repugnância pela “instintiva hostilidade” dos socialistas “contra toda forma de sociedade que não a do rebanho autônomo (chegando até à própria rejeição dos conceitos ‘senhor’ e ‘servo’ – ni dieu ni maître, diz uma fórmula socialista)”. Repugnava particularmente a irritante resistência à “todo direito particular e privilégios”.
Nietzsche se arremeteu furiosamente contra este “novo homem” emancipado, proposto pelos socialistas. Afirmou ele: “A degeneração geral do homem, até chegar àquilo que hoje aparece aos broncos e cabeças rasas do socialismo como seu ‘homem do futuro’, como seu ideal! – essa degeneração e apequenamento do homem em completo animal-rebanho (ou, como eles dizem, em homens da ‘sociedade livre’), esta animalização do homem em animal anão dos direitos e pretensões iguais, é possível, não há dúvida nenhuma! Quem pensou uma vez nesta possibilidade até o fim, conhece um nojo a mais do que os outros homens.” Ele era um dos que, compreendendo o perigo que o socialismo representava, compartilhava desse nojo aristocrático contra a plebe e seus porta-vozes.
O “homem do futuro” de Nietzsche era de outra natureza. A sua essência seria “guerreira”. Ele estaria, a todo momento, “pronto a sacrificar à sua causa seres humanos”, pois seus “instintos viris se alegrariam com a guerra e a vitória”. E concluiu: este “homem do futuro” renegaria “a desprezível espécie de bem-estar com que sonham merceeiros, cristãos, vacas, mulheres, ingleses e outros democratas”.
Nietzsche sonhava com a chegada deste “homem do futuro”, o “homem redentor”, que nos redimiria “do grande nojo” igualitário. Não foi por acaso que a irmã deste autor, Elisabeth, confundiria o super-homem nietzschiano com Adolf Hitler, o Führer do terceiro Reich.
A maior crítica que dirigiu aos governantes e à sociedade alemã de seu tempo foi quanto à sua incapacidade de impedir a barbárie que viria com a vitória da democracia e o ascenso do movimento operário-socialista. Afirmou: “Ninguém hoje tem mais coragem de ter direitos particulares, de ter direito de domínio (…). Nossa política está doente dessa falta de coragem! – O aristocratismo dos sentimentos foi solapado da maneira mais subterrânea pela mentira da igualdade das almas”. Aqui está, portanto, o radicalismo anti-moderno do pensamento de Nietzsche.
O nosso autor fez, então, uma interessante analogia entre os primeiros cristãos e os movimentos contestatórios contemporâneos, anarquistas e socialistas. Esta mesma operação seria feita por Karl Kautsky e Rosa de Luxemburgo, dois importantes membros da social-democracia alemã, mas com um conteúdo e objetivos completamente diferentes.
Afirmou Nietzsche:
“Pode-se estabelecer entre cristãos e anarquistas uma perfeita equação: sua finalidade, seu instinto, visa somente a destruição (…). O cristianismo foi o vampiro do Império Romano (…). Esta organização (o Império) era firme o bastante para suportar maus césares (…) (mas) não era firme o bastante contra a mais corrupta espécie de corrupção: os cristãos (…). Este bando covarde, feminino açucarado, que passo a passo afastou as ‘almas’ desse descomunal edifício (…). Todo espírito respeitável no império romano era epicurista: então apareceu Paulo (…) contra Roma, contra o “mundo”, o judeu, o judeu eterno par excellence (…). Ele compreendeu como, com o auxílio do pequeno e sectário movimento cristão (…) se pode ascender um ‘incêndio do mundo’; como, com o símbolo ‘Deus na cruz’, se pode somar tudo o que está por baixo, tudo o que é secretamente sedicioso, a inteira herança de agitação anarquista dentro do império, em uma potência descomunal”.
O cristianismo e o socialismo eram os símbolos da decadência imperial antiga e moderna. O que os socialistas viam de positivo na ideologia e na prática igualitaristas, niveladoras, dos primeiros cristãos, Nietzsche via degenerescência e corrupção. Por isto mesmo o seu nojo se estendeu até estas antigas comunidades cristãs.
Nietzsche nunca escondeu sua ideia sobre a necessidade de manutenção da divisão da sociedade em classes sociais como condição sine qua non para manutenção e desenvolvimento da moderna civilização ocidental. Afinal, como ele mesmo disse, “uma cultura superior só pode surgir onde existam duas castas distintas no seio da sociedade: a dos trabalhadores e a dos ociosos (…) ou para dizê-lo com palavras mais fortes, a casta do trabalho forçado e a do trabalho livre”. Os antigos filósofos gregos já haviam difundido esta tese, que se tornou “pedra de toque” de todo pensamento conservador posterior.
Por fim, uma breve nota sobre o anti-semitismo nietzschiano. É verdade que, em alguns momentos, ele se levantou contra os exageros das posições anti-semitas de alguns de seus diletos amigos alemães. No entanto, nunca procurou esconder suas posições preconceituosas contra os judeus, que o incluem no campo dos teóricos anti-semitas.
“Que a Alemanha, afirmou ele, tem judeus mais do que o bastante, que o estômago alemão, o sangue alemão tem dificuldade (e ainda por muito tempo terá dificuldade) para dar conta desse quantum de ‘judeu’ (…) tal é o (…) instinto geral, ao qual é preciso dar ouvidos e pelo qual é preciso agir”.
Isto o levaria a conclamar aos alemães: “’Não deixem entrar novos judeus!’ – em especial do Oriente. ‘Aferrolhem os portões!’ – assim ordena o instinto de um povo cuja espécie ainda fraca e indeterminada, de modo que poderia facilmente (…) ser extinta por uma raça mais forte”. E conclui: “um pensador, que tem na consciência o futuro da Europa, contará, em todos os projetos que faz sobre esse futuro, com os judeus assim como com os russos, como os fatores que, de imediato, se apresentam como os mais seguros e prováveis no grande jogo e combate de forças”.
Premonitoriamente Nietzsche previu os “grandes combates de forças” que se travariam mais tarde entre o império nazista dirigido por Hitler. Neste confronto de titãs, duas perspectivas de humanidade se chocaram. Uma, representada pelo nazismo, advogava a superioridade de alguns poucos escolhidos e a renascimento de um mundo de senhores e escravos. Outra, representada pelos comunistas, que apontava a conquista de uma verdadeira igualdade entre os homens como ponto de partida de uma humanidade emancipada. Marx e Nietsche não estiveram completamente ausentes nestes dias tormentosos da II Grande Guerra Mundial.
Decerto, seria incorreto traçar uma linha reta, sem mediações, entre Para Além do Bem e do Mal e Auschewitz ou entre o conceito “vontade de poder” e a política de extermínio dos nazistas. Mas, sem dúvida, suas ideias faziam parte de um amplo movimento intelectual reacionário e irracionalista que se expandiu pela Europa no pós-1848, como resposta teórica e política à ascensão do movimento democrático, operário e socialista. Elas ajudariam a assentar as bases para a construção de uma forte ideologia militarista e imperialista na Europa, especialmente na Alemanha.
As perspectivas de Marx e Nietzsche são completamente diferentes. Mais do que diferentes, são antagônicas e, portanto, não podem ser conciliadas. O ecletismo teórico, a tentativa de fusão entre dois pensadores tão distantes entre si, só pode ser explicado pela quadra histórica em que viveram estes intelectuais pós-modernos. Espremidos entre a radicalidade do pensamento crítico dos agitados anos 1960, que se esvaziava, e o pessimismo crônico que ganhava corpo com o início da crise das experiências socialistas (e social-democratas) e a ofensiva liberal-conservadora, no final da década de 1970. Ou seja, este ecletismo teórico era um dos reflexos superestruturais de um tempo sombrio. Condições que só começaria a se alterar nos últimos anos do século passado.
Referências
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar, Ed. Companhia das Letras.
LUKÁCS, Georg. Ela salto a la razón, Ed. Grijaldo
MARX, K.; ENGELS, F. O Manifesto do Partido Comunista,
NIETZSCHE, Os pensadores, volume I e II, Ed. Nova Cultural.
* AUGUSTO CÉSAR BUONICORE é historiador; mestre em ciência política pela Unicamp
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