STRYKE - Virtual Metal Magazine

RADIO A FERRO E FOGO

quarta-feira, 18 de março de 2009

ALMA BEAT



Alma Beat, anos 80
Por Antonio Bivar


Setembro de 1980. Gregory Corso ainda está lá, vivendo a vida que a maioria desiste de viver quando descobre que existem outras coisas para fazer, inclusive arranjar um emprego e casar. Mas não o Gregory. Ele continua lá. Agora é considerado. Gran­de poeta americano. Um monumento vivo. (Pausa). Nesse dia de setembro, por exemplo, um jovem repórter o acompanha. Jim Nisbet ganha a vida como carpinteiro mas sua alma é beat. Ou pelo menos existe essa identificação. Beat: não só o senso rítmico, a batida (beat), mas também meio que prostrar-se venci­do, abatido (beat) pelo fatalismo do pós-guerra. Isso se aplicou a todos aqueles fragmentos da sociedade norte-americana obcecada com a liberdade que a história dessa nação prometera, ou seja, guiar em alta velocidade, fumar maconha e largar mão dos pequenos negócios, acreditando que o admirável mundo novo seria por demais monolítico e brutal pra que, nele, essas coisas sobrevivessem. Mais tarde o termo beat será usado como referência jornalística às comunidades de arte, jazz e poesia, de Nova York e San Francisco. Um cenário com muito pouco a ver com a participação de mulheres como artistas, elas próprias. A verdadeira comunicação acontecia entre os homens; as mulheres estavam presentes como espectadoras. Suas old ladies (senhoras). Era uma estética masculina essa corrida frenética e delirante a todas as percepções sensoriais possíveis, uma exacerbação ex­tremada dos nervos, um constante ultrajar do corpo com bebi­das, drogas, promiscuidade sexual, pintura abstrata e a absorção do zen-budismo.
As cenas mudam mas não a constância beat. Vinte e cinco anos depois do boom, Gregory Corso, em essência, não mudou nada. O jovem repórter é fã do velho poeta. Jim Nisbet adora Gregory Corso e pintou essa oportunidade rara, um espaço na revista WET para escrever um perfil do poeta de Gasoline. Como se sabe, as novas ondas sempre começam e acabam na imprensa; e a WET tem essa coisa de new, esse novo meio DADA. Tem exemplar que metade vem certo e a outra metade, de pernas pro alto. A começar das capas. Publicada em Santa Mônica, Califór­nia, a WET tem boa circulação entre os new wavers internacionais. E lá vão os três, rumo à baía de San Francisco: Gregory Corso de mãos dadas com Max (seu filho de quatro anos) e o jo­vem repórter. Jim percebe que o poeta tem plena consciência de que um menino nessa idade precisa do pai. Jim observa; o retra­to do artista madurão já começa a se esboçar em sua imaginação.
A volta do desordeiro exemplar
Gregory Corso, beat por excelência, e que estava lá explo­dindo com a cena, há 25 anos, agora, no começo dos 80, ainda está ardendo, ainda na estrada. Dos quatro grandes beat origi­nais, ele é um dos dois sobreviventes. Kerouac e Neal Cassady estão mortos e nas telas. Ginsberg é o cabeça de uma escola de poesia e praticamente um monumento nacional. Mas Gregory Corso ainda está lá, na highway. O poeta não tem telefone nem endereço fixo. Quem quiser achá-lo terá que fazer como Jim Nisbet e tomar, como ponto de partida, a North Beach. Corso sempre volta lá. Na sua voz agarotada ele ainda mantém o jeitão bronco e o linguajar típico do bairro Little Italy, N.Y., onde nasceu há uns cinqüenta e tantos anos. Conta-se, por exemplo, que, em 1979, precisando de grana para levar a mulher e o filho à Nova York, ele saiu do lendário Vesuvio’s Bar, em North Beach, foi à porta ao lado – a livraria e editora City Lights Books – pegou um tijolo e mandou na vitrine, atingindo diretamente a caixa registradora, de onde pegou todo o dinheiro. Umas dez pessoas testemunharam a cena mas, antes que alguém fizes­se qualquer coisa, os Corsos já estavam no avião rumo a Nova York.
O dono da livraria é seu velhíssimo amigo Lawrence Fer­linghetti, um dos beats originais, também poeta, e editor de muitos dos melhores trabalhos de Corso. Ferlinghetti já está acostumado. Afinal de contas, em North Beach poesia é um assunto familiar. Turistas sequiosos da aura, imigrantes chineses, velhos italianos, putas caquéticas e jovens punks, North Beach é um lugar onde também os poetas são bem-vindos. Existem cafés onde qualquer escriba pode passar o dia sentado engolindo ca­feína e anotando idéias em seus cadernos secretos; e muitos clu­bes onde o poeta pode ler seus poemas para os fãs. Em North Beach quem faz poesia tem seu trabalho lido, ouvido, encoraja­do e criticado. Que melhor lugar para um poeta viver e escrever? – conclui Jim Nisbet. Mas até mesmo nesse simpático milieu Corso tem uma interessante reputação. Velhos amigos falam de­le com lealdade mas expulsam-no de suas casas. Corso tem fama de se oferecer pra comer a mulher do próximo na frente de to­dos, fazendo a proposta com um humor e uma fúria dignos de um monstruoso Mr. Natural.
Fora-da-lei, fora de série, sempre ele mesmo, Gregory Corso é imprevisível e agitador. Capaz de arrebatar uma platéia uni­versitária inteira e demandar que lhe façam perguntas sobre qualquer coisa. A tudo ele responde com paixão, quer seja uma discórdia filosófica sobre sânscrito ou outra questão qualquer sobre astronomia tangindo o Grande Ano, quando o sistema solar será absorvido pela Via Láctea, acabando por revolvê-la inteira não deixando pó sobre pó, para que o grande UM ressuscite Beleza pura. (Silêncio.) Corso gosta, sobretudo, de alfinetar as pessoas, especialmente gente que ele gosta. É uma técnica co­nhecida essa de descobrir o que os outros pensam mas é também o jeito dele ensinar as pessoas mais sobre elas mesmas; e do poe­ta extrapolar limites de relacionamento e, lógico, de se meter em confusão. Mas, e é ele mesmo quem recorda, tudo isso era ainda pior antes de ter descoberto a poesia. Na altura dos vinte anos, Gregory Corso tinha passado mais tempo na cadeia que fora dela. Dançara pela primeira vez aos doze anos. Fora “iluminado” pela poesia aos dezessete, quando um colega de prisão lhe deu um volume de poemas de Shelley. Por causa desses anos em ca­na, hoje Gregory Corso é culto, durão, gentil e surpreendentemente aberto; mas a impressão maior que ele dá é a de uma in­teligência brincalhona, jamais vencida. Gênio e formação, a al­ma beat instila um senso de prodigalidade e esperança, em to­dos os que bebem de sua fonte. Tudo isso escreveu Jim Nisbet, de seu poeta favorito. E mais. (Pausa.) Se você for entrevistá-lo é bom ir preparado, porque Corso gastará todo o dinheiro que vo­cê tiver no bolso. No fliperama (ele sempre ganha e te olhará com escárnio se você marcar tilt); em cerveja, maconha, sanduí­che, de bar em bar, e com o filho Max acompanhando. E ele não deixará o moleque mascar o chiclete ganho da dona do boteco. Porque chiclete é shit.
Jim Nisbet continua especulando. Conversa com uma mu­lher que vive há muito tempo em North Beach. E ela diz: “Tem gente que é samurai. Homens que são lutadores. Gregory é um deles. Está sempre na estrada, sempre quebrando regras, sempre em algum lugar à beira do limite. Tem um poema dele no qual ele atira tudo pela janela exceto a Beleza. A Beleza ele salva. E é verdade, Gregory viaja na luz. As pessoas pensam que ele é um vagabundo qualquer, que ele está queimado, que ele está pirado de tantos anos na estrada, mas Greg é um sobrevivente. E ele nunca se esquece de que é um pai. Passando por todos esses anos de loucura, envolvido com tanta gente estranha, as viagens, as drogas, as rebordosas, ele nunca vai tão longe a ponto de esque­cer que Max é seu filho e que um guri precisa do pai.” Jim ficou impressionado com as palavras da mulher. Seu respeito pelo poeta aumentou e Corso o fez pagar outra garrafa de Bourbon. Logo depois, à mesa de snooker, taco em mira, Gregory Corso fala: “Einstein, Freud e Marx,” – acerta nas bolas e arremata: “eis a trindade.” Jim Nisbet fica sem palavras.
Quase todos os beats dos anos 50 já passaram para a lenda. Como a maioria das pessoas, também a maioria dos poetas tem que assumir os compromissos da vida. Mas não Gregory. Corso crê que o mundo lhe deve sustento porque sua única tarefa é es­crever poesia e declamá-la. E se o mundo não lhe paga o que deve, ele vai lá e pega. Exatamente como fez na livraria do Ferling­hetti.
Desde 1957 que ele e Ginsberg não participavam juntos de uma récita poética. Agora, em 1980, lá estão os dois, unidos para uma récita especial no Keystone Korner. Uma equipe roda um vídeo e tudo. Muitos são os rostos conhecidos na platéia su­perlotada. A atmosfera é familiar, paciente. Ginsberg se ocupa dos dois microfones por quase meia hora. Corso surge no palco e anuncia que está com dor de dente. Será que alguém na platéia tem codeína ou coisa assim, para matar a dor? A platéia cai na gargalhada e logo pinta a produção. Corso engole, com cerveja. Baseados vão passando de mão em mão, chegam ao palco e vol­tam a circular, pelas mesas de trás. Corso usa meio-óculos presos por uma corrente e Ginsberg fala da longa amizade, desde 1950, e anuncia: “Gregory me disse que está com uma pilha de novos poemas, escritos aos últimos dois anos, o que é um mila­gre.” Corso suga um dente furado e retruca “De modo algum, homem,” – passa o baseado pro Ginsberg, pega o microfone e grita – “foi fácil”. (Pausa.) Seu estilo não mudou: das métricas e rimas e a sintaxe convulsiva de seus mentores românticos (Shelley...) à respiração ejaculatória e a gíria das ruas nos anos 80. E a voz do palhaço com a terceira visão piscando, ele, que clama só a Beleza como meta, e a vida como caminho rumo à Ela. “Como é que eu posso, através desse escândalo cósmico, morrer? / O último fodedor, que persegue o rabo da luz?”
Corso e Ginsberg, ambos perto dos sessenta anos. Eles podem passar a noite toda, a vida inteira, lendo, falando, pen­sando...
Jim Nisbet escreveu e entregou a matéria. Tinha feito um bom trabalho. Sentia-se orgulhoso dele. Em novembro saiu a re­vista. Número especial, todo ele dedicado a... HERÓIS. Como a revista é de lá, os (anti)heróis, ainda que alternativos, são todos sobrinhos do Tio Sam. Além de Gregory Corso, tem John Ken­nedy Jr. (filho do Homem), tem Jello Biafra (do grupo punk Dead Kennedys, anarquistas, contrários à obediência e à com­placência), Bud Cord (ator do cultuado filme Ensina-me a viver) e Robert Mitchum, entre outros. Robert Mitchum é uma espécie de beat que nasceu um pouco antes mas que sempre gos­tou dessas coisas que todos nós temos direito. A maconha crescia na beira da estrada de ferro da Savannah de sua adolescência. Aos dezesseis anos foi preso por vadiagem, a vida rude, estradas e a sorte de ter sido descoberto pelo cinema e lançado pelo magnata Howard Hughes, na RKO, como resposta masculina à Jane Rus­sell (o busto). Nos anos 40, Hughes resolvera erotizar a América. Jane e Bob, dois modelos eficazes. Mitchum é um dos sobrevi­ventes da velha Hollywood, quando atores eram deuses. Quase todos se foram, de John Wayne a Henry Fonda. Reagan, que na­quele tempo era um mero ator classe B, agora é presidente. Mas Mitchum é o velhão do momento. Nunca se envolveu em políti­ca e sempre ficou na dele. Nunca parou de filmar. Foi o primei­ro ator em Hollywood a ser preso por posse de maconha, nos 40, gerando manchetes escandalosas tipo estrelão-pego-em-flagra­-na-casa-de-starlet-durante-festinha-de-embalo. A starlet, no ca­so, era Lila Leeds, loirinha chocante. Mitchum ficou na dele e acabou perdoado. Não só pela Lei – cinqüenta dias em cana etc. – mas também pela esposa, Dorothy, namorada de adolescência e com quem é casado até hoje, primeira e única.
Certa vez perguntaram a Mitchum o que é que ele fazia, que tipo de ginástica, para manter a forma; ele respondeu: “Mando uma boa fumaça pra cuca, me deito, relaxo, fecho os olhos e sonho que estou fazendo ginástica.” Décadas depois, al­guém perguntou se ele já se sentia decadente. “Desde que me lembro, sempre fui decadente.” respondeu o homem. San des­ses diz-que-diz-ques que se fazem lendas e heróis. E agora, na WET, o rapaz quer saber de Mitchum se ele tem heróis. E ele responde: “Claro, o pobre filho da puta com a marmita debai­xo do braço que vai pro trabalho todo dia e odeia ter que fazê-­lo.”
Nos 60s a imprensa conservadora considerava Mitchum o primeiro hippie. O que não era novidade, pois, com idêntica simpatia, a imprensa alternativa já escrevera isso antes. Talvez ele seja o primeiro beat famoso desde Thoreau e Whitman. As­sim como Gregory Corso, Robert Mitchum também é outro Mr. Natural.
Os enjeitados do sistema
Peço licença ao leitor para um ligeiro recuo no tempo. Não mais 1980 e sim 1974, ano crudelíssimo. A crise do petróleo bo­tando existências pra baixo e o pavoroso mundo orwelliano já to­mando sua forma e marcando data para 1984; o livro, voltava à moda. A contracultura – em suas mil ramificações de hippies, heads, freaks e estudantes drop-outs – baratinada por um lado, entre maus perdedores no limbo e, por outro, ex-heróis, ex­contestadores agora milionários beneficiados do Sistema passan­do férias em Nassau, capitalistas sem outra energia a oferecer que carimbos, clichês e blablablás em suas musiquetas MOR (Middle Of the Road, meio do caminho, essa música popular que faz a hit machine dos States e cuja fórmula serve de modelo para o resto do mundo). No meio do pessimismo de 1974 um bookzine obscuro e meio anacrônico chamado The Savoy Book– editado por um bando literati de Manchester – trazia uma interessante reversão do Howl, de Ginsberg. Era o uivo dos enjei­tados do Sistema nos anos da Grande Decepção que foram os anos após-sonho. Escrito por J. Jeff Jones, eis o Howl Now (1974), que mal traduzi como Uivo Agora:
Vi as melhores mentes de minha geração destruídas pelo sucesso/Respeitáveis e flatulentos no rigor da moda/Choferiza­dos pelas avenidas de neon ao crepúsculo/Na voracidade do úl­timo grito celebridades caras-lindas correndo atrás da última admiração puxa-saca conectada à mídia e suas lentes fabricantes de estrelas na oficina da fama/Prósperos e aveludados, boche­chas amanteigadas e gracinhas/O papo rolando na iluminação indireta verde-jade das haciendas em Laurel Canyon/Boiando em piscinas térmicas contemplando contratos/Em lençóis de seda entregando seus cus aos agentes/Fisgados por tietes de hu­mor obscuro que rondavam os festivais/Olhos de uma exagerada sabedoria química e outros descuidos auto-indulgentes/Nos tapetes das coberturas/Expulsos dos Holiday Inns por vandalismo babaca tipo grafitar abobrinha em telas de tevês coloridas/E de­pois cagar de medo nos estúdios de gravação/Por estarem torrando o dinheiro da companhia/Enquanto o talento finalmente ia embora/E o terror atravessava as paredes/E a obscuridão os le­vava daqui para sempre...
Nesse mesmo sinistro ano o arlequim David Bowie dava a quinta guinada em sua carreira. Em vez de chorar o passado, Bo­wie lamentava o futuro. Bowie, que, com outros, inventara uma nova escola de pretensão, vinha agora de lançar Diamond Dogs, LP tipo conceitual e francamente inspirado no universo Bosch­-futura do livro The Wild Boys, de Mr. Burroughs, e seu método Cut Up (recorte). Bowie e Burroughs foram fotografados lado a lado para efeito de imagem, legenda & promo, com publicação garantida na Rolling Stone e tititis por todo o universo onde am­bos pontificam. Depois de Bowie, Burroughs se permitirá foto­grafar ao lado de outros popstars esquisitos. Amizades eletivas, como dizia... Goethe? Zappa, Patti Smith... Na estação 83/84 Burroughs fotografou com Sting, da banda The Police. Não muito depois participaria do novo disco de Laurie Anderson, Performer.
Voltando à alma beat, em 1969 Burroughs respondeu a uma pergunta formulada por Daniel Odier, que queria saber de Bill qual a relação entre ele e o movimento beat, e qual a impor­tância literária desse movimento. William S. Burroughs respon­deu: “De modo algum me associo ao movimento, e nunca me associei, nem com seus objetivos nem com seu estilo literário. Tenho alguns amigos íntimos no movimento: Jack Kerouac e Allen Ginsberg e Gregory Corso. Eles são meus amigos há muito tempo, mas sempre fizemos coisas diferentes, tanto na literatura quanto na vida. Dificilmente você encontrará quatro escritores mais diferentes, mais distintos. Trata-se mais de um caso de jus­taposições que... associação de estilos literários ou de outros ob­jetivos. A importância literária desse movimento? Eu diria que a importância literária do movimento Beatnik talvez não seja tão óbvia quanto sua importância sociológica... de ter transformado e populado o mundo com beatniks. Quebrou todos os tipos de barreiras sociais tornando-se um fenômeno mundial de impor­tância apavorante. Os beatniks se mandam pra qualquer lugar tipo África do Norte e assumem que a maneira de pensar dos árabes não é diferente da deles, basicamente, e fazem contato direto. Diferente do ponto de vista folclórico, que primeiro vê o árabe de fora, já com preconceitos sobre aquilo que o árabe pen­sa.”
Mais Burroughs depois.
Boemia é chapéu velho
Na França, há 150 anos, os boêmios originais também vi­viam a eterna luta de classes. Odiavam a burguesia e seus valores materialistas. Achavam-se naturalmente apartados da sociedade. Num plano elevado, por causa de seus gênios; os artis­tas estavam apenas sendo enão podiam ser explicados; sen­tiam-se no direito de alguns privilégios, por causa disso; rea­giam contra as certezas e os progressos da indústria eda ciência; glorificavam a paixão, a auto-expressão, o comportamento bizarro e, claro, a si próprios; diziam-se boêmios porque achavam que viviam como os ciganos. Ao longo dos anos e das novas escolas boêmias tal espírito veio so­frendo alterações mas ainda persiste. Enquanto os boêmios na época da Revolução Francesa glorificavam uma visão ro­mântica dos ciganos, Kerouac, nos 50s, tinha uma visão positi­vamente paternalista dos negros. Mardou Fox, a garota da nove­la The Subterraneans, era mestiça (considerada negra, lá). As­sim como mestiça-mexicana era a prostituta Tristessa, da novela homônima. Estes dois são considerados livros menores de Ke­rouac, mas lidos com senso de período, são petiscos deliciosos da ingenuidade boêmia beat da passagem de 50 para 60.
A guisa de linhagem, dos beats vieram os hippies – zen e mais orientalismos, o espírito franciscano, o LSD e o caleidoscó­pio psicodélico, as trips no realismo mágico, gatas soltas e sem sutiã, hell’s angels mijando cerveja nos festivais, op & pop on top. O final do sonho gerou um glamour meio dantesco meio que blakiano; e sem qualquer novidade no front que não fosse, no máximo, Wild Turkey, pro nosso gosto, um contingente de adolescentes anarquistas resolveu inventar de berrar e assumir, produzindo a revolta punk, em 1976. Com algo de novo, dife­rente porém identificável no primeiro look, os punks de 76, além da revolta social e da postura paramilitar (a suástica a guisa de shock & piada), também parodiavam a primeira infância; nada censura a primeira infância, ela BERRA; camisa-fraldão, alfinete de gancho, chupeta, vomitar em qualquer lugar... A barbarização punk causou espécie, arrepiou meio mundo, ga­nhou uma vastidão de collaborateurs e tornou-se infame. Mas essas coisas não morrem. Como tudo que é feito com emoção, de algum modo elas se perpetuam. Numa época tão francamen­te informática como a nossa, os punks conseguiram um pouco mais que épater la bourgeoisie. Na política de contrastes e con­frontos, os punks exorcizaram. Um au contraire lógico, vide­ verso situacionista, e, a toque de prensagem, Siouxsie & The Banshees. E mais uma vez, Byron (e Álvares de Azevedo, convenhamos): “Viva logo e morra jovem” = Sid Vicious. Heroinô­mano como Burroughs; mas este escapou.
Um ano depois, em Londres, no Belle Vue, um poeta punk com o cabelo àDylan (fase Highway 61 Revisited) e fã confesso de Gregory Corso, declama: “Eu podia ser um escritor de cres­cente reputação/Eu podia ser o cara que recolhe os tickets na Broadway Station.” Ele é John Cooper Clarke; e acrescenta: “Poesia devia ser o caminho mais curto de se explicar algo difícil de ser explicado.”
Poetas saem à cata do que há para ser visto. Uma rosa é uma rosa, todo homem é mortal, tudo é relativo, nada se perde, as coisas se transformam, viver é aprender, ponto final: Katmandu. Descobertas inenarráveis. E quando acontece a pronta identificação, então, é mágico. Em suma: beat é a busca da li­berdade, na calma ligeiramente opiácea do cool jazz. Nenhuma ordem imperativa de natureza fascista pode impedir o ser e o na­da.
Sofrendo de post-capitalismo triste, a Inglaterra não é hoje o que fora no século XIX, quando dominava cerca de um terço do planeta; mas ainda assim, em relação ao resto do mun­do, hoje, ela é perfeita. Mais de três milhões de desempregados, todos recebendo o salário-desemprego. É pouco para eles mas, em relação ao que o brasileiro tem que suar pra ganhar, até que é muito. Umas quatro vezes o nosso salário mínimo. Isso, pra fi­car em casa e, no caso, não fazer nada. Então, num reino onde a juventude desempregada porém assalariada é vasta, ainda bem que o-que-fazer é que não falta. Nada mais natural que ser artis­ta e promover o good- time.
Então, é um estágio maravilhoso. Todos podem entrar nes­sa, desde que se tenha zest pra coisa. E o que se verá daqui a pouco. Jerry Dammers (Special a. k. a.) disse, dia desses: “Estou cheio da Boemia; estou mudando pra Utopia, que fica logo ali, na estrada abaixo do Nirvana.”
Gostar ou não de William Burroughs é irrelevante. Ele sim­plesmente está lá, uma presença na cultura, uma influência ma­ciça não só na prosa dos 60s, 70s, 80s, mas também em mais de duas décadas de artes performáticas, filmes experimentais e cul­tura pop. Muitos novos artistas da vanguarda atual trabalham em cima das idéias de Burroughs. Além do mais, qualquer um pode abrir oficina de arte, gravar disco, virar figurinista, inven­tar roupas e desfiles, artes gráficas, revistas e colagens, formar uma banda, mexer com informática e desvendar os mistérios da tecnotrônica. Punk em 76, New Wave (mais fina, menos agrê) em 78, post-modernismo total, livre, saudável e sem culpa, nos 80s. Com todos os recursos modernos e antigos, desde os últi­mos inventos da informática até as montanhas de bricabraques que Otimistas, Fatalistas e Sonhadores vêm coletando ao longo dos séculos... é deitar e rolar, no barato desses tesouros. Nem os 60s foram tão deliciosos assim. Nos 80s só se fala em estilo. Então, o visual dessa gente, nas calçadas e nos clubes, é de deixar qualquer um fascinado. Os New Romantics em 1980 fazendo o gênero pirata, num saque aos livros ricos em ilustrações e legen­das, biografias dos astros de vida perigosa tipo “Eu fui um es­pião nazista” ou quase (Errol Flynn); ou cavaleiros audazes ou gângsteres saídos do Scarface de Paul Muni e George Raft. Blitz, Club For Heroes, Gossips, Legends, La Beat Route, alguns dos clubes onde adeptos da nova vaga se juntavam em Londres. Clu­bes para todos os gêneros, nessa guerra de estilos, inclusive para os Neo Psicodélicos. Clubes baratos, drinques baratos, a atmos­fera mais post-moderna que a Utopia poderá ter sonhado. Co­mo não dava para explicá-los – eles estavam apenas sendo – o movimento ganhou da imprensa a alcunha de Culto Sem Nome, em 1981. Frio, sem outro ideal que a pose milimetralmente impecável. Irreais. Anglo Fellinianos. Os rapazes usavam cosméticos como quem faz um lindo desenho a pastel de si mes­mo. O senso de imagem levado ao capricho milimetral. Sobre­tudo no corte de cabelo. Ver e ser visto, o lema. Era uma relação entre eles e eles, os rapazes, na “hora dos pavões”, como disse a imprensa local. Fotógrafos registravam o espanto do momento para o deslumbramento da posteridade. Eles, do Culto Sem Nome, queriam fazer História assim. Conscientes de que seriam estudados no futuro. Aparecem nas páginas das Vogues da vida e, que delícia!, moram em squats (cortiços avant-garde, casa­rões, prédios atijolados, propriedades condenadas ou fechadas para reforma sabe-lá-deus-quando e que as novas gerações de boêmios e precisados sempre tomam como moradia; não têm que pagar aluguel e às vezes têm sorte de encontrar eletrici­dade funcionando e até telefone), são squatters, são sempre ex­traordinários. Nada mais natural que o sucesso e o reconheci­mento internacionais cheguem mais para alguns deles. Boy George, por exemplo, morava num desses squats até o começo do sucesso, quando saiu na revista Harpers & Queen. Nada mu­da no reino encantado da boemia, tudo é uma questão de tur­ma. Hoje ditam moda, ditam gostos, ditam tudo. Até no Mappin já chegou. E quando chega no Mappin é porque outra coisa deve estar acontecendo em outro lugar.
Ritmos exóticos da África, do Caribe, de New Orleans e até do Brasil foram redescobertos – e as garotas já com aquele corte de cabelo: longo na frente, curto dos lados e atrás – e o molho afro-mambo-jambo-jazzy-salsa-samba-rumba-pachanga & merengue-tango e bossa-nova dando todo um novo tempero ao tecnopop. Envergando vistosos zoot suits, músicos brasileiros eram bem-vindos nessa cena, de onde saíram celebrizados: Kito Poncioni e Geraldo d’Arbilly, membros do Blue RondoÀ La Turk.O Blue Rondo era uma mistura perversa de jazz, latin, african e funk, com pesada ênfase na mitologia dos 50s, usando ométodo dos 80s. Mas o que mais chamava a atenção para a banda era a roupa com a qual a rapaziada se apresentava, o zoot suit, também muito citado no Pé na estrada, de Kerouac. De que se trata exatamente o zoot suit, e o que é que está fazendo em 1981, no clube La Beat Route? Com a palavra, Chris Sulli­van, vocalista, designer e um dos “jovens turcos” do grupo Blue Rondo. Chris estudou fashion design na melhor escola de arte de Londres, a St. Martin’s, tendo abandonado o curso no meio, como a maioria. Aos 21 anos ele é também dono de uma loja num market da King’s Road. O zoot suit que ele relançara esta­va pegando nos clubes, a demanda era uma loucura. A revista The Face, bíblia da nova voga, que começara no pós-New Wave de 1980 com o slogan “A fronteira final do rock” passando, dois anos depois, para “A revista mais bem vestida do mun­do”, publica o texto de Chris sobre o zoot suit: “Mais do que uma simples onda na moda, o zoot suit originou-se nos States, de uma rebelião contra o racionamento de tecidos durante os anos da Segunda Guerra Mundial. A partir de certa altura do sufoco al­guns homens deram um basta aos ternos apertados e curtos. Moda não seria moda se não se adaptasse ao espírito e às restri­ções de seu tempo, ditava a Vogue, na época, em atitude coe­rente com a atmosfera geral do minimalismo em tempos auste­ros. Isso provocou uma reação em certas alas da rapaziada boê­mia. E essa moçada lançou o zoot suit, o terno com pano em excesso. Da largura dos ombros ao comprimento, até o joelho, o paletó. Folgada a calça, ajustada na cintura, que é alta, acima do umbigo. E os acessórios: sapato, gravata, chapéu. Cravo na la­pela dá a nota chique. Na década de 40, o estilo foi adotado pe­los controvertidos músicos de jazz. O sax tenor Lester Young complementava o estilo com um chapéu em forma de torta de carne; Dizzy Gillespie, além do boné, cultivava um vistoso cava­nhaque; Cozy Cole suspendeu a cintura até a altura dos mami­los. Mas o mais exagerado foi Cab Calloway, o mestre do jump, que alongou o paletó até dois palmos da canela, dando a im­pressão de capote. E a cintura subiu tanto que a calça, de tão al­ta, lembrava um sobretudo. O zoot suit teve seu maior divulga­dor em Ferdinando, o rude e bonachão personagem dos quadri­nhos de Al Capp, que fazia grande sucesso no início dos 40s. Chargeando o racionamento durante a Guerra, Capp vestiu Ferdinando em zoot suit durante uma longa temporada, toda vez que esse personagem era obrigado a vestir terno. Na cena beat, os beats usavam o termo “zooty” para designar pessoas moder­nas.
A academia final
Em 1982 de novo William Burroughs faz rentrée, reemer­gindo de algum lugar na crista da última onda. Cities Of The Red Night (Cidades da noite vermelha), sua última novela, era lançada em brochura. Os adeptos da escrita burroughsiana tive­ram que esperar um tempão. Cities é sua segunda obra-prima, chegando 23 anos depois de Naked Lunch (Almoço nu), novela chapante, ainda hoje adiantada no tempo. Burroughs trabalhou dez anos em Cities. Esta não é, claro, uma novela convencional; mas segue uma linha coerente que só ocasionalmente sai da tri­lha e cai no delírio. Centrada em cinco antigas cidades no deser­to de Gobi, cidades que foram, em outras eras, populadas por uma sábia e graciosa raça Black, os habitantes originais da Terra. Sucedeu algo desastroso durante um misterioso estouro atômico que fez o céu vermelho para sempre, espalhando um vírus laten­te tipo B-23, causando a mutação da maioria dos blacks numa raça maldosa de gente White. Completamente inábeis no con­trole de si mesmos e de seus apetites sexuais esses mutantes fa­zem brotar mamilos extras, tornam-se escarlates e só conseguem atingir o orgasmo estrangulando-se mutuamente durante o ato sexual. Esse Vírus volta no século XX e o planeta começa a pi­rar; cidades abarrotadas de bares, bordéis, sórdidas arcadas, sau­nas, recônditos transitados por vampiros whites fissurados atrás de novas drogas e outros meios interessantes de se destruírem.
Duas forças opostas entram em cena: A primeira é Skipper Nordenholz, o mais vil dos chefões, que sente gana de precipitar uma guerra racial que resulte na destruição do mundo. A seguir ele reconstruirá a raça White, usando de um banco genético es­pecial reprodutor de hitlerettes, com suas aprontações bárbaras e ruídos não menos. Os inimigos de Skipper são The Wild Boys (Os garotos selvagens, velhos favoritos de Burroughs). Homos­sexuais e assassinos selvagens têm o dom de viajar no espaço e no tempo; voltam ao século XVIII onde se tornam piratas e fundam uma colônia rebelde. Um deles – Noah Blake – “in­venta” um antigo tipo de rifle e uma bala de canhão explosiva. Assim armados eles planejam expulsar os espanhóis da América Central e – literalmente reescrevendo a história – evitar que a raça White colonize o mundo.
Burroughs inspirou-se no Capitão Mission, pirata de verda­de, que no século XVIII fundou uma colônia chamada Liber­tatia, no mínimo um século antes das revoluções francesa e ame­ricana. Em Libertatia todos os marginais da civilização tornam-se livres da escravidão e da religião. Tivemos, aqui no Brasil, vá­rias dessas colônias. A Quilombo, por exemplo, tem semelhan­ças. Tivemos também a colônia Cecília, no século XIX, idealizada por Giovanni Rossi, um italiano misto de cientista, botânico e músico que, graças à sua amizade com Carlos Gomes, conseguiu despertar o interesse de D. Pedro II pelo projeto. Pe­dro II doou a terra, no Paraná. Rossi, que era militante anarquista, arregimentou 150 pioneiros dispostos a participar de sua aventura: médicos, operários, camponeses, engenheiros, artistas, professores e até marginais. Os fazendeiros vizinhos não viram com bons olhos a colônia, achando que seus próprios emprega­dos acabariam influenciados e, fazendo-se o cerco, a Cecília dançou. E com ela os anarquistas seguidores do culto à exis­tência sem pátria nem patrão.
Infelizmente todas essas experiências falharam: as colônias eram geralmente traídas por oficiais da British Intelligence. No caso do Capitão Mission, ele foi morto em uma batalha naval. Pois é. Conta a história que com o Paraguai aconteceu assim; o Paraguai era uma nação perfeita ou quase, um paraíso, que esta­va ali, país civilizadíssimo (comparado ao que é o Paraguai hoje, é quase difícil acreditar), até que, não querendo atender aos in­teresses ingleses e de seus dependentes (Brasil, Argentina e Uru­guai), sucumbiu barbaramente.
Burroughs diz: “A oportunidade estava lá. Foi perdida... O direito de se viver onde se quer, na companhia escolhida, sob leis com as quais se concorde, morreu no século XVIII, com o Capitão Mission. Só um milagre ou uma catástrofe podem res­taurar essa chance.” Cities é uma novela que se lê do mesmo modo como foi escrita: sonhando.
Cidades da noite vermelha vai além de tudo que Bur­roughs escreveu. Mas se o seu universo particular segue absoluta­mente intacto, sua apresentação agora é feita de forma radicalmente diferente. Para começar, a maioria do Cut Up foi embo­ra. O Cut Up – para quem não sabe – é um método experi­mental de escrever ou “teipar”, primeiro popularizado por Bur­roughs. Um artista que trabalha com Cut Up simplesmente re­corta teipes ou páginas de narrativa convencional e joga com jus­taposições de frases, sentenças, palavras, em uma Nova Ordem que funciona de modo subversivo sobre a linguagem original, permitindo ao leitor a ocasional leitura do futuro. Bowie, que usou de muito Cut Up para reunir as palavras de seus discos Diamond Dogs, Low e Heroes, chama a esse método de “aci­dente calculado”. Mas o método Cut Up não foi inventado por Burroughs. Não é preciso ir tão longe a ponto de afirmar que a turma do Tristan Tzara já fazia isso, dadaístas picando jornal e enfiando num saco para depois, com a mão, tirar palavras e pedaços formando poemas DADA. Mas não. Quem inventou o Cut Up mesmo foi Brion Gysin. Se Burroughs é considerado o mentor intelectual dos beats e pós, Brion Gysin, por sua vez, é tido como mentor de Burroughs. Quase da mesma idade, am­bos são amigos há muitíssimo tempo. Cidadão naturalizado norte-americano, Gysin exibiu seus desenhos em Paris ao lado de Picasso e dos surrealistas, na precoce idade de dezenove anos, antes de se mudar para o Marrocos onde viveu mais de vinte anos. En­controu Burroughs no infame Beat Hotel, Paris, em 1958. Am­bos trocaram idéias e confidências dando início a uma amizade e colaboração que duram até hoje. Brion Gysin é um alquimista moderno. Entre outros inventos, é dele a Dream Machine, uma máquina caseira que pode precipitar sonhos na mente do operador. Baseada em vibrações de ondas alfa, essa máquina de so­nhos poderia ter tornado obsoletos os psicotrópicos se tivesse si­do industrializada e posta no mercado na hora certa. Não foi. Quanto à invenção do Cut Up, aconteceu em 1959. Preparando-se para começar apintar uma tela, Gysin pegou uma faca Stan­ley, uma pilha de jornais e tascou. A seguir, juntando pedaços, ele descobriu um padrão sobre o qual trabalhou até criar um sis­tema. Do sistema ao método foi só questão de treino. O resto é história e linguagem avant-garde.
Burroughs usou de Cut Up para reduzir a montanha de manuscritos que resultou em Naked Lunch.Montanha de escri­tos, resultado de viagens pela América do Sul, Paris, Marrocos, Londres; gradativamente sua ficção foi criando forma, freqüentemente em cartas a Allen Ginsberg. Burroughs chamava o que escrevia de “rotinas”: fantasias drogadas sobre garotos do Mar­rocos, gangsteres de 1920, políticos norte-americanos, os Deuses Maias da Morte, tudo sobrecarregado de uma pesada dose de sexo homossexual explícito. O resultado, graças ao Cut Up, é Naked Lunch, bíblia underground desde o lançamento. O títu­lo, que também não faz sentido em inglês (e que não tem nada a ver com o Déjeuner Sur L ‘Herbe, o quadro impressionista de Manet), é freqüentemente explicado assim: Burroughs, Kerouac e amigos estavam num restaurante. Tinham almoçado, os pratos estavam vazios, com ossadas de galinha e restos. Kerouac olhou aquilo e exclamou: “The naked lunch!”, o almoço nu. Bur­roughs achou ótimo e tomou para título de seu livro.
Voltando a Brion Gysin, em 1967 ele levou Brian Jones, dos Rolling Stones,para Jajouka, na África. Isso estimulou um interesse que resultou no mais interessante trabalho dos Stones desse período, Their Satanic Majesties Request, e no LP póstu­mo Brian Jones Plays With The Pipes Of Pan At Jajouka.
Gysin e Burroughs não param de influenciar. Nos 60s, ti­nha aquele grupo de rock espacial, o Soft Machine(nome tirado de uma obra de Burroughs); nos 70s, em São Paulo, Soft Machinevira marca de jeans. O filme Performance, de Roeg e Cammell, foi francamente inspirado nos filmes experimentais Cut Ups e Towers Open Fire, realizados em parceria por Gysin, Burroughs e Antony Balch. Da New Wave emerge um grupo de nome Naked Lunch, nos 80s, assim como a banda Was Not Was, que realiza um trabalho mixando Cut Up e funk. E muito mais, como se verá.
Em 1982, Gysin e Burroughs participaram de um evento que fez furor no recém-inaugurado Hacienda Club, na cidade de Manchester. Burroughs viajou de Nova York, onde vive, e Gysin, de Paris, onde mora. O evento, intitulado The Final Academy, foi um festival organizado por dois membros do grupo Throbbing Gristle, uma fusão de skinhead com punk e uma garota chamada Cosey Fanni Tutti, que usou de posar nua para revistas pornôs tipo Fiesta e que depois, com a banda, deu de dar uma performance com o chamativo título “Prostitu­tion”, no zooty Institute of Contemporary Arts, exibindo todos os seus pôsteres arrancados das revistas, assim como os Tampax usados, deixando a imprensa furiosa. O Daily Mail tascou a manchete ESTES SÃO OS DESTRUIDORES DE NOSSA CIVI­LIZAÇÃO. Fanni Tutti sumiu e os dois rapazes fecharam o gru­po e fundaram uma corporação alternativa, a Psychic Television, especializada em vídeos e eventos. San eles os organizadores do The Final Academy. Genesis P-Orridge, um dos rapazes, foi a Paris falar com Gysin. “A pessoa mais excitante que conheci na vida”, disse P-Orridge, “não merece continuar no esquecimen­to”. P-Orridge e Pete Christopherson, e o outro, são também conselheiros editoriais de uma linha de livros publicados pela Rough Trade, outra corporação alternativa de sucesso. O primei­ro desses livros saiu em março de 82. Título: Planet R– 101: Here To Go, por Terry Wilson. Uma mistura de transcrições de con­versas, fotos raras e coisas sobre a vida de Brion Gysin, com pre­fácio de William Burroughs.
Mas, voltando a The Final Academy, o evento mostrou as pinturas de Gysin (a maioria paisagens das cercanias de Marro­cos), teve leitura de trechos, música e poesia, tudo referente ao trabalho de Gysin; teve os dois filmes que ele fez com Bur­roughs e Balch. Na platéia destacava-se mais aquele tipo de bri­gada new que curte os sixties, muita beat louca, mas teve tam­bém bastante neo-DADA, claro!, o grupo Cabaret Voltaire es­tava no programa; Monte Cazzaza, o anarquista norte-americano fez seu famoso número: escrever DADA em tijolos e soltá-los nos pés das pessoas. E mais bandas ao vivo, tipo 23 Ski­doo, Virgin Prunes;diretores do novo cinema underground dando ocostumeiro plá, feito o Derek Jarman. Perguntas do gê­nero “Mas isso é Arte?”, lógico, não faltaram. Do contrário não seria The Final Academy.A nova intelligentsia, que esperava muito mais do acontecimento, decepcionada, arrasou. Steve Taylor escreveu em The Face:“Numa época em que a priorida­de precisa ser o entendimento dos insidiosos poderes políticos e econômicos, que cada vez mais limitam a ação humana, é muito deprimente encontrar um grupo de músicos e intelectuais cola­borando pra valer na mistificação do mundo que nos cerca, com estéticas auto-respeitosas, espiritualismo velado, e a superesti­mação de valores que já deveriam ter sido enterrados há quinze anos.”
Quanto a Burroughs, questionado a respeito, revelou total indiferença aos artistas jovens de qualquer ramo. Participar de um novo “movimento” não tem nada a ver com ele. Mas... e o chique apocalíptico da Academia Final?, perguntaram. “Foi mais uma palestra”, respondeu William. E acrescentou: “Te­nho que fazer essas palestras porque não posso viver só do que ganho com livros.”
Em 1984 ele é homenageado com outro grande evento, rea­lizado no clube Ritz,em Nova York. Com a participação de Lou Reed, Ginsberg, John Giorno, Burroughs leu trechos de seu no­vo trabalho em andamento, outra novela, Western Land (Terras ocidentais, título provisório). Na mesma semana estréia o docu­mentário Burroughs – The Movie, de Howard Brookner, no Bleecker Cinema. Lançado neste mesmo ano, seu novo livro, The Place Of Dead Roads (O lugar das estradas sem saídas), é que não foi bem. Foi demolido pela crítica. Burroughs está com 70 anos. Vive em Manhattan, num loft no Bowery, anexo à YMCA; só ele e sua coleção de armas. Burroughs está com a vida em ordem mas a produção literária continua selvagem e repentinamente profusa. O artista lembra um Samuel Beckett america­no, mas o corpo está ganhando peso. Sem dúvida ele faz parte da tradição maldita de Sade, Céline e Genet..., esse homem que não se considera um beat – nem pode, ele é imbatível, sinta a piada – mas que influenciou e foi influenciado por Ginsberg, Kerouac, e que já dormiu com os dois e muitos dos outros, Neal Cassady etc...
Mas... e o nosso Gregory Corso, onde andará? Na estrada, certamente. Metido em sua velha jaqueta marrom, um fiapo de palha ou espuma de cerveja pendendo no queixo macho, man­cha de nicotina no lábio superior, meio banguela, ohomem é um touro. Bebe o tempo todo para afogar a eterna timidez. As­tuto, eterno delinqüente juvenil, nature boy, seu último livro – o primeiro escrito nesses onze anos – é dedicado aos seus filhos e às respectivas mães; três filhos com a antiga e um com a atual. Herald Of The Autochthonic Spirit (Arauto do espírito nativo) está tendo boa procura. E Corso nunca viajou tanto. Deixando as estradas de sua louca América para trás e atravessando o Atlântico atendendo convites. Está fazendo a Europa, ele, que nunca havia ligado muito para o velho continente. Agora ele é chamado para palestras na Alemanha, na Itália, na França... ele, a Lenda Viva. E vai. Voando ou de navio, depende do mood. E às platéias excitadas, universitárias ou boêmias, ele diz aquelas barbaridades poéticas. E se a Poesia lhe nega qualquer licença poética, ele vai lá e toma. E a Poesia adora. Em Londres, numa dessas noites dos 80s, no Beat Club, onde uma nova leva de beboppers uma noite por semana recria a cena beat, o assun­to é a Olimpíada de Poesia programada para a semana seguinte na magnífica Catedral de Westminster. Gregory Corso, honro­samente, participará. Afinal, a Catedral, as lajes dos poetas imortais, Byron, Shelley...
E um vislumbre de zoot suit no canto do olho esquerdo do velho batalhador. Dopes são bem-vindas na embriaguez desse sucesso. Tudo isso e o céu também, com simpática compaixão, alguém delira... Vejo as melhores mentes da minha geração fa­zendo alguma coisa.

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