
Ana Mary Cavalcante
Ruído em prosa
Ruído em prosa
A prosa do poeta curitibano Paulo Leminski (1944-1989) é redescoberta a partir dos contos e das crônicas de Gozo Fabuloso. Até então inéditos em livro, os textos despertam a crítica e remetem a novas publicações
A história de Gozo Fabuloso começa antes da morte de Paulo Leminski, quando ele próprio organizou as crônicas e contos (39 textos, inéditos em livro) em uma pasta verde, etiquetada com o atraente título. Leminski escreveu também uma introdução, ''Narrar'', onde explica, ''óbvio o título desta legião de enredos. Gozo Fabuloso só pode ser o delírio combinatório de extrair do restrito infinito dos entrechos possíveis uma história sem par, delícia só comparável à de cantar uma canção bonita''. Noutras palavras, setas em linha reta: ''Fábulas, canções, que seria de nós sem essas misteriosas entidades? Vanguardas e outras subversões à parte, nunca vai faltar amor para uma canção bonita, aquela história redonda, o retrato da pessoa amada''.
Os originais ficaram guardados (esquecidos?) em editoras durante 15 anos, até a publicação pela DBA - iniciando a Coleção Risco: Ruído. Dois nomes que formam um, como se divulga: ''A primeira coleção, Risco, abrigará a ficção e a crítica feita pelos novos autores e ensaístas, ou seja, a produção dos que estão correndo riscos, ao riscar com o seu estilete o verniz da literatura mais bem-comportada. A segunda coleção, Ruído, runirá os autores que, já mortos (canonizados ou não), deixaram obra igualmente ruidosa, perturbadora e provocativa''. É nessa brecha que Leminski entra.
Um dos mais instigantes autores de seu tempo (e fora dele), reconhecido e celebrado em seu cenário (e fora dele), Paulo Leminski é parte da geração de poetas marginais dos anos 70. No início, eram as revistas alternativas da distante Curitiba; da década de 1980 em diante, o verso se fez carne e habitou (em) entre nós. Ao falar do escritor de La Vie en Close, fala-se também dos irmãos Campos (Augusto e Haroldo), de Décio Pignatari, de Régis Bonvicino, de Arnaldo Antunes, de Caetano Veloso, de Gilberto Gil, de José Miguel Wisnik... amizades seletas. Além delas, os críticos costumam dizer que ''sua obra assimilou elementos da primeira fase do Modernismo, como o coloquialismo e o bom-humor, do Concretismo e também da poesia oriental, que inspirou a criação de seus famosos haicais''.
Mantendo um relacionamento com a vanguarda e flertando com a MPB, com os jornais e com as histórias em quadrinhos, Leminski quis ''tornar a poesia uma expressão popular'', como identificou Jotabê Medeiros em O Estado de São Paulo (21/08/2004). Nesse sentido, experimentou (de forma consciente), ainda segundo Medeiros, ''uma linguagem fácil (sem ser vulgar), musical e fluida. Era uma espécie de embate para mostrar que, sim, a poesia seria capaz de mobilizar multidões. Leminski era muito erudito. Traduzia inglês, hebraico, tupi, japonês, latim, russo e sânscrito. Mas gostava mesmo era do ambiente fértil dos corredores das universidades, do boteco, das possibilidades do samba e da cultura popular''.
É uma prosa poética que escreve Gozo Fabuloso. E talvez essa poesia disfarçada, capitu, seja o principal mérito do livro. No mínimo, a isca. Leminski está ali também na ciranda de humor e dor, na arquitetura de algumas narrativas, no caso de amor que mantém com a cultura oriental. Mas a primeira impressão é que falta fôlego ao poeta para os contos e as crônicas; o mesmo fôlego com que domina o verso, matéria-prima de sua imortalidade. Não que o Gozo... seja ruim; é um tanto diferente do Leminski de quem se é íntimo. E, como Leminski não é senso comum, é preciso ler Gozo Fabuloso. Reler. Ler outra vez. Mais uma. Até gostar. O RESTO IMORTAL Paulo Leminski Queria não morrer de todo. Não o meu melhor. Que o melhor de mim ficasse, já que sobre o além sou todo dúvida. Queria deixar aqui neste planeta não apenas um testemunho da minha passagem, pirâmide, obelisco, verbetes numa obscura enciclopédia, campos onde não crescem mais capim. Queria deixar meu processo de pensamento, minha máquina de pensar, a máquina que processa meu pensamento, meu pensar transformado em máquina objetiva, fora de mim, sobrevivendo a mim. Durante muito tempo, cultivei esse sonho desesperado. Um dia, intui. Essa máquina era possível. Tinha que ser um livro. Tinha que ser um texto. Um texto que não fosse apenas, como os demais, um texto pensado. Eu precisava de um texto pensante. Um texto que tivesse memória, produzisse imagens, raciocinasse. Sobretudo, um texto que sentisse como eu. Ao partir, eu deixaria esse texto como um astronauta solitário deixa um relógio na superfície de um planeta deserto. Claro que eu poderia ter escolhido um ser humano para ser essa máquina que pensasse como eu penso. Bastava conseguir um aluno. Mas pessoas não são previsíveis. Um texto é. A impressão do meu processo de pensamento não poderia estar na escolha das palavras nem no rol dos eventos narrados. Teria que estar inscrito no próprio movimento do texto, nos fluxos da sua dinâmica, traduzido para o jogo de suas manhas e marés. Um texto assim não poderia ser fabricado nem forjado. Só poderia ser desejado. Ele mesmo escolheria, se quisesse, a hora de seu advento. Tudo o que eu poderia fazer nessa direção era estar atento a todos os impulsos, mesmo os mais cegos, nunca sabendo se o texto estava vindo ou não. Era óbvio, um texto assim teria, no mínimo, que levar uma vida humana inteira. Na melhor das hipóteses. Uma questão colocou-se desde o início. A tensão da espera de um tal texto poderia ser o maior obstáculo para seu surgimento. Quanto a isto, não havia solução. A questão teria que ser vivida em nível de enigma e conflito, sigilo e dissimulação. Evidentemente que o texto que resultasse desse estado deveria, por força, reproduzí-lo em sua essencial perplexidade. A máquina-texto que surgisse não seria um todo harmonioso, já que a harmonia só convém às coisas mortas. O que eu pretendia era uma coisa viva, uma vida que me sobrevivesse. E a vida é contraditória. Não sei mais de esse texto virá. Ou se já veio. Tudo o que quero é que, se vier, se lembre de mim tanto quanto eu soube desejá-lo.
A história de Gozo Fabuloso começa antes da morte de Paulo Leminski, quando ele próprio organizou as crônicas e contos (39 textos, inéditos em livro) em uma pasta verde, etiquetada com o atraente título. Leminski escreveu também uma introdução, ''Narrar'', onde explica, ''óbvio o título desta legião de enredos. Gozo Fabuloso só pode ser o delírio combinatório de extrair do restrito infinito dos entrechos possíveis uma história sem par, delícia só comparável à de cantar uma canção bonita''. Noutras palavras, setas em linha reta: ''Fábulas, canções, que seria de nós sem essas misteriosas entidades? Vanguardas e outras subversões à parte, nunca vai faltar amor para uma canção bonita, aquela história redonda, o retrato da pessoa amada''.
Os originais ficaram guardados (esquecidos?) em editoras durante 15 anos, até a publicação pela DBA - iniciando a Coleção Risco: Ruído. Dois nomes que formam um, como se divulga: ''A primeira coleção, Risco, abrigará a ficção e a crítica feita pelos novos autores e ensaístas, ou seja, a produção dos que estão correndo riscos, ao riscar com o seu estilete o verniz da literatura mais bem-comportada. A segunda coleção, Ruído, runirá os autores que, já mortos (canonizados ou não), deixaram obra igualmente ruidosa, perturbadora e provocativa''. É nessa brecha que Leminski entra.
Um dos mais instigantes autores de seu tempo (e fora dele), reconhecido e celebrado em seu cenário (e fora dele), Paulo Leminski é parte da geração de poetas marginais dos anos 70. No início, eram as revistas alternativas da distante Curitiba; da década de 1980 em diante, o verso se fez carne e habitou (em) entre nós. Ao falar do escritor de La Vie en Close, fala-se também dos irmãos Campos (Augusto e Haroldo), de Décio Pignatari, de Régis Bonvicino, de Arnaldo Antunes, de Caetano Veloso, de Gilberto Gil, de José Miguel Wisnik... amizades seletas. Além delas, os críticos costumam dizer que ''sua obra assimilou elementos da primeira fase do Modernismo, como o coloquialismo e o bom-humor, do Concretismo e também da poesia oriental, que inspirou a criação de seus famosos haicais''.
Mantendo um relacionamento com a vanguarda e flertando com a MPB, com os jornais e com as histórias em quadrinhos, Leminski quis ''tornar a poesia uma expressão popular'', como identificou Jotabê Medeiros em O Estado de São Paulo (21/08/2004). Nesse sentido, experimentou (de forma consciente), ainda segundo Medeiros, ''uma linguagem fácil (sem ser vulgar), musical e fluida. Era uma espécie de embate para mostrar que, sim, a poesia seria capaz de mobilizar multidões. Leminski era muito erudito. Traduzia inglês, hebraico, tupi, japonês, latim, russo e sânscrito. Mas gostava mesmo era do ambiente fértil dos corredores das universidades, do boteco, das possibilidades do samba e da cultura popular''.
É uma prosa poética que escreve Gozo Fabuloso. E talvez essa poesia disfarçada, capitu, seja o principal mérito do livro. No mínimo, a isca. Leminski está ali também na ciranda de humor e dor, na arquitetura de algumas narrativas, no caso de amor que mantém com a cultura oriental. Mas a primeira impressão é que falta fôlego ao poeta para os contos e as crônicas; o mesmo fôlego com que domina o verso, matéria-prima de sua imortalidade. Não que o Gozo... seja ruim; é um tanto diferente do Leminski de quem se é íntimo. E, como Leminski não é senso comum, é preciso ler Gozo Fabuloso. Reler. Ler outra vez. Mais uma. Até gostar. O RESTO IMORTAL Paulo Leminski Queria não morrer de todo. Não o meu melhor. Que o melhor de mim ficasse, já que sobre o além sou todo dúvida. Queria deixar aqui neste planeta não apenas um testemunho da minha passagem, pirâmide, obelisco, verbetes numa obscura enciclopédia, campos onde não crescem mais capim. Queria deixar meu processo de pensamento, minha máquina de pensar, a máquina que processa meu pensamento, meu pensar transformado em máquina objetiva, fora de mim, sobrevivendo a mim. Durante muito tempo, cultivei esse sonho desesperado. Um dia, intui. Essa máquina era possível. Tinha que ser um livro. Tinha que ser um texto. Um texto que não fosse apenas, como os demais, um texto pensado. Eu precisava de um texto pensante. Um texto que tivesse memória, produzisse imagens, raciocinasse. Sobretudo, um texto que sentisse como eu. Ao partir, eu deixaria esse texto como um astronauta solitário deixa um relógio na superfície de um planeta deserto. Claro que eu poderia ter escolhido um ser humano para ser essa máquina que pensasse como eu penso. Bastava conseguir um aluno. Mas pessoas não são previsíveis. Um texto é. A impressão do meu processo de pensamento não poderia estar na escolha das palavras nem no rol dos eventos narrados. Teria que estar inscrito no próprio movimento do texto, nos fluxos da sua dinâmica, traduzido para o jogo de suas manhas e marés. Um texto assim não poderia ser fabricado nem forjado. Só poderia ser desejado. Ele mesmo escolheria, se quisesse, a hora de seu advento. Tudo o que eu poderia fazer nessa direção era estar atento a todos os impulsos, mesmo os mais cegos, nunca sabendo se o texto estava vindo ou não. Era óbvio, um texto assim teria, no mínimo, que levar uma vida humana inteira. Na melhor das hipóteses. Uma questão colocou-se desde o início. A tensão da espera de um tal texto poderia ser o maior obstáculo para seu surgimento. Quanto a isto, não havia solução. A questão teria que ser vivida em nível de enigma e conflito, sigilo e dissimulação. Evidentemente que o texto que resultasse desse estado deveria, por força, reproduzí-lo em sua essencial perplexidade. A máquina-texto que surgisse não seria um todo harmonioso, já que a harmonia só convém às coisas mortas. O que eu pretendia era uma coisa viva, uma vida que me sobrevivesse. E a vida é contraditória. Não sei mais de esse texto virá. Ou se já veio. Tudo o que quero é que, se vier, se lembre de mim tanto quanto eu soube desejá-lo.
Poesias
Paulo Leminski
I
Paulo Leminski
I
Confira
tudo que respira
conspira
II
Tudo é vago e muito vário
meu destino não tem siso,
o que eu quero não tem preço
ter um preço é necessário,
e nada disso é preciso
III
Cinco bares,dez conhaques
atravesso são paulo
dormindo dentro de um táxi
IV
isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vainos levar além
V
O pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique
Paulo Leminski nasceu aos 24 de agosto de 1944 na cidade de Curitiba, Paraná. Em 1964, já em São Paulo, SP, publica poemas na revista "Invenção", porta voz da poesia concreta paulista. Casa-se, em 1968, com a poeta Alice Ruiz. Teve dois filhos: Miguel Ângelo, falecido aos 10 anos; Áurea Alice e Estrela. De 1970 a 1989, em Curitiba, trabalha como redator de publicidade. Compositor, tem suas canções gravadas por Caetano Veloso e pelo conjunto "A Cor do Som". Publica, em 1975, o romance experimental "Catatau". Traduziu, nesse período, obras de James Joyce, John Lenom, Samuel Becktett, Alfred Jarry, entre outros, colaborando, também, com o suplemento "Folhetim" do jornal "Folha de São Paulo" e com a revista "Veja". No dia 07 de junho de 1989 o poeta falece em sua cidade natal. Paulo Leminski foi um estudioso da língua e cultura japonesas e publicou em 1983 uma biografia de Bashô. Sua obra tem exercido marcante influência em todos os movimentos poéticos dos últimos 20 anos. Seu livro "Metamorfose" foi o ganhador do Prêmio Jabuti de Poesia, em 1995. Em 2001, um de seus poemas ("Sintonia para pressa e presságio") foi selecionado por Ítalo Moriconi e incluído no livro "Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século", Editora Objetiva — Rio de Janeiro.
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